quarta-feira, 25 de março de 2009

Histórias










A noite


Ia voltar ao liceu onde, anos antes, ensinara. Tinha tantas esperanças à frente, tantas ilusões, e, ao mesmo tempo, tinha medo. Sim, sentia-se insegura.
Vivera muitos anos fora. Como saber até que ponto a prejudicara o afastamento do país? Evoluíra noutras realidades, conhecera países distantes com usos diferentes, aprender com essas gentes muita coisa. O ensino parecia-lhe agora longe.
Decidira escolher a escola da noite, com um ritmo mais suave, menor número de alunos, crescidos, o horário tinha menos horas, talvez melhor para começar. Ainda assim, cheia de incertezas, com dúvidas angustiantes no momento de começar as aulas, o tal medo. A noite teria sido a escolha certa? Não teria sido melhor continuar com o ensino do dia, que já conhecia?

A verdade é que foi um “mergulho” no país, no país real, no país de que estivera afastada, anos e anos.
Lidar com pessoas cheias de dificuldades, grandes insuficiências culturais, desconfiadas, quase agressivas, não era simples. Mas essa experiência, simultaneamente dura e aliciante, fê-la sentir-se bem ao começar as aulas.
Casos tão diferentes, alunos tão variados, de idades, de origens, de preparação, eram situações demasiado difíceis de controlar: pela heterogeneidade das turmas, pela instabilidade que isso lhe causava, e, também, porque tudo o que experimentava era novo para ela.
A chegada a essa realidade desconhecida deu-se com um impacto muito forte. Percebeu, mais tarde, que a decisão de escolher a noite, fora acertada e lhe tornara, no fim e ao cabo, mais rápida a readaptação, porque acontecera com uma grande intensidade emotiva. E tudo, nessa novidade e dificuldade, constituíra um desafio para ela.

O primeiro contacto com as classes dos alunos-trabalhadores, com os problemas e carências que revelavam, foi duro.
Muitos vinham directamente do trabalho, em transportes públicos cheios de gente, ensonados, sem comer; outros iam voltar para o trabalho, a seguir às aulas, porque tinham turnos da noite.
A incapacidade, ou lentidão, em fixar o que lhes ensinava, a falta de atenção causada pelo cansaço, e, por outro lado, o desinteresse, a pouca assiduidade por parte dos alunos que dos cursos diurnos, onde não tinham tido sucesso, e, por isso, ainda menos motivados, tudo lhe criava impaciência.
Surgiram as dificuldades entre as quais, desde a primeira hora, foi o como “arrumar” os alunos, os níveis diferentes dentro das turmas, porque havia “unidades” de vários níveis dentro da mesma aula: alunos que faziam a iniciação na língua francesa, alunos que já tinham a tingido um nível médio e outros que finalizavam a disciplina. Nada tinha sentido para ela.
Havia ainda outras diferenças que tornavam complicado organizar grupos heterodoxos, não só pelo nível etário –a idade dos alunos ia dos dezoito aos cinquenta anos -, como também social e até cultural, pois muitos alunos pertenciam a culturas diversas, geograficamente distantes, pouco adaptados ao nosso tipo de ensino.

Pareceu-lhe, durante muitas semanas, missão quase impossível de realizar. Saía das aulas a pensar que era ela a incapaz por não encontrar a solução rapidamente. Imaginava que lhe “pesava”, no fundo, o desconhecimento das pessoas, a paragem no ensino, de tantos anos; pensava que o mais certo era já não ter idade para se adaptar a esses novos desafios.
“Estiveste parada no tempo, fora disto, vai-te custar a adaptar, diziam-lhe as colegas, olhando-a com pena. Caíste de pára-quedas... Olha, minha querida, improvisa! Cria...”
A intenção delas era boa, mas não a ajudava em nada. Sabia que ia ser precisa muita improvisação e paciência e entusiasmo, para animar as aulas e animar-se. E ser criativa, inovar como? Não sentia a mínima criatividade nas aulas, e a improvisação, sempre aparente, não era fácil. Sentia-se repetitiva, e, quanto a inovar, não inovava nada.

As classes eram uma amálgama de pessoas que pouco ou nada tinham aprendido ou que tinham esquecido “como” se estudava. Via-se na dificuldade que tinham em expressar-se, na incompreensão dos textos que liam, dos questionários, até nos erros de ortografia.
Notara uma certa desconfiança em relação ao professor - quem era? O que ia exigir deles? Não sabia que estavam cansados mas que precisavam daquele diploma? O facto de, também ela, se sentir pouco à vontade, quase atemorizada, faziam-nos sentir inquietos a todos.
Pouco a pouco, porém, foi-se estabelecendo maior confiança, criou-se uma relação complexa, quase de ajuda mútua.
Como explicar melhor? Ela sentia-se, às vezes, a praticar uma acção que não era mero ensino, mas sim uma coisa múltipla, uma acção de inserção social, de estabelecer o relacionamento deles com um outro mundo. E, paralelamente, a preocupação de transmitir conhecimentos, de lhes abrir os espíritos, de os ouvir e tentar aprender também a realidade que eles eram, e ela desconhecia. Era um intercâmbio “cultural”, de verdade, feito das trocas entre ela e os alunos.
O medo de rejeição, dos primeiros tempos, o recuo mútuo, transformou-se, numa vontade de descoberta constante, com bons e maus momentos, numa aventura comum, com pequenas conquistas, graduais, retrocessos enormes, desconsolo -“de parte a parte? ou só seus?”, pensava -, mas também breves alegrias:
Quando via um rosto abrir-se porque entendia o que ela explicara, e via que, para essa pessoa, tinha sido dado um passo em frente, era para ela estimulante. Ver alguém que se sentia avançar, e pensava que, afinal, isso de aprender era possível, mesmo que, no momento seguinte, voltasse o desânimo, numa luta dura e nem sempre gloriosa, ajudava-a.
De repente, abriam-se “clareiras”. Pequenas vitórias, um olhar mais vivo, a aluna, a Luísa, que dissera:
- “Eu, de gramática, stôra, nunca soube, nem vou aprender porque não percebo nada...”
Mais tarde a mesma Luísa reconhecia que, afinal, afinal...um bocadinho conseguira aprender, que as orações já se podiam entender e que o verbo era o verbo...
- “Acho que já vou indo melhor...”
Também notava, em si própria, um enriquecimento, pela comunicação que ia estabelecendo e da necessidade que tinha de mostrar, em cada momento, o seu entusiasmo mesmo forçado. Escolhera uma forma de optimismo exagerado, para esquecer o sombrio da noite, o frio das salas, as caras cerradas e desconfiadas dos primeiros dias.
Houve um dia fantástico! Foi quando a mesma Luísa descobriu uma “paixão” súbita por uma gravura do texto de Português. Luísa trabalhava como mulher a dias e contava-lhe que o seu trabalho era, a maior parte das vezes, lavar as casas de banho dos cinemas, ou dos centros comerciais. Era uma mulher gorda, loira, de óculos, sem qualquer atractivo a não ser a simpatia e a frontalidade e a sua vontade de sonhar. Não gostava do que fazia, queixava-se, esperava vir a ter outro trabalho mais humano, em que encontrasse pessoas, visse coisas bonitas.
Havia nela um desejo de beleza e, talvez por isso, as cores suaves, o romantismo, a poesia dos “Enervés de Jumière”, de Luminais, a tal gravura no livro, a tivessem deslumbrado. Pintura em que talvez ela nunca se tivesse debruçado tão intensamente, sem Luísa. O interesse, a curiosidade dela chamaram-lhe de tal modo a atenção para o quadro, que se entusiasmou também. E, com ela, toda a turma seguiu. Essa paixão que a “obrigou” a ir à internet descobrir tudo sobre o pintor romântico, e a contar o que vira a toda a turma. E a procurarem na mediateca da escola todas as informações sobre o quadro. Passou a ser uma propriedade deles. Luísa animava-se, as perguntas que agora fazia sobre o quadro, vendo o interesse de todos, faziam-na sentir-se diferente, igual aos outros, aos lá de fora, os que não lavavam casas de banho.
As trocas nos dois sentidos, o dar e o receber, o não receber e ficar magoada, revelava um certo relacionamento, lento mas que ia progredindo, e que ela pensava ser o único que valia a pena tentar, porque positivo.
As sensibilidades que ofendia sem querer, a agressividade latente, a frieza com que lhe deram a entender, no começo: “professora, eu tenho que andar para a frente! Tu tens que me dar isto!” Isto era o exame de passagem de unidade, quase exigida, mais o subentendido: “não me dês cabo da vida!”, iam desaparecendo, nunca completamente, mas começava a haver uma qualquer forma de “comunicação” em ritmo de afectividade.
Barreiras que se quebravam? Sentia que sim, mas logo se dizia: “Nada de utopias nem optimismo excessivo, isto é apenas transitório, tudo vai recomeçar nos próximos dias”...
A dificuldade foi permanecendo, para eles e para ela. O que aprendeu, ou confirmou depois, foi que só a abertura ao que era “diferente” dela, ao “outro”, é que lhe permitiria dividir com eles o que conhecia, a cultura, o sonho, um pouco da beleza da vida a que por vezes não tinham acesso, ou em que já não acreditavam. E a “abertura” deveria ser recíproca, tinha de os aceitar dentro dela, compreender o que eles sabiam e queriam ensinar-lhe, e tinha de aceitá-lo, porque só se abririam na medida em que ela se abrisse e os recebesse, que só assim podiam ficar “aptos” a saber também.
E pensava que, no fundo, lhe fora útil a experiência dos últimos anos, vivida como estrangeira, em perpétua mudança, a dizer “olá” e, logo, “adeus”, e a adaptar-se aos muitos “outros” que fora encontrando. “Estrangeirada”, agora, na própria terra.
Por momentos, parecia-lhe que lhes dera um impulso novo, um entusiasmo, a curiosidade. Duvidava sempre. Essa impressão era, talvez, enganadora. Com o passar dos dias, o entusiasmo ir-se-ia fanando como uma flor. Depressa a curiosidade deles esmoreceria e voltava o cansaço, as queixas, a falta de motivação.
-“Para quê, professora?... Não vai servir para nada. ”
Nesses dias, quando se sentia desanimar, pensava: “Felizmente há a música...” Punha um CD e não falava, deixava-os tranquilos a ouvir, se fosse necessário durante a hora inteira. Usava-a para os atrair, para os interessar pela língua francesa. Era bom ver a reacção à música que lhes trazia com todo o seu amor por ela : Jacques Brel e “Ne me quitte pas”, Barbara e “Nantes”, Piaf e "Je ne regrette rien", Reggiani: "Votre fille a vingt ans/ que le temps passe vite,/hier encore elle était si petite/ et ses premiers amours sont vos premières larmes"...
Os rostos distendiam-se, suavizavam-se as expressões carregadas, cantarolavam acompanhando a música e ela sorria nesses momentos. E quando descobriu que, com o Joe Dassin, podia ensinar o condicional, em francês, sorriu, contente com a ingenuidade da descoberta: "Et si tu n'existais pas/alors pourquoi j'existerais?" Com a letra da canção em frente, todas cantavam...
Teria ficado tão triste se lhe dissessem que a sua música não prestava.

E, nas férias, nos fins de semana, pouco a pouco, começou a sentir saudades dos seus “sombrios” da noite, das alunas queixosas, das angústias, da fragilidade, da ingenuidade tantas vezes, das histórias trágicas do quotidiano igual, dos filhos, das creches dos filhos, das aulas dos filhos, do pouco tempo que têm para a família.
E lembrava-se da alegria quando a viam, depois das férias, voltar, carregada com o gravador e os CDs, algum livro de pintura, imagens. Como se agarravam à secretária dela, a contar tudo o que se passara durante aquela ausência, a queixarem-se. A pedir, sim, a pedir, no fundo, que não as abandonasse, que não deixasse de as ouvir.
E essa ideia ajudava-a, porque percebia que precisavam dela. Talvez afinal não tivesse sido inútil a escolha que fizera da noite...


1 comentário:

  1. Insegurança?
    Foi o que senti mas como aluna.
    Tudo é verdade, cansaço, filhos, tantos anos sem estudar, tantas regras gramaticais esquecidas!
    Foi um prazer ter sido aluna de Português desta Senhora Sensacional.
    Saramago? Mas quem é que gosta ou percebe?
    Meorial do Convento? Pois eu não li. Não li e fazia parte do programa, consegui perceber e fiquei curiosa já no final do ano lectivo com as explicações da professora. Claro que tinha de ler na integra e... adorei! Também já li o "Ensaio sobre a cegueira" e também gostei. Será que as pessoas que lêem Saramago tiveram a mesma professora? Conheço imensa gente que não consegue ler uma página!
    A professora Mª João relembrou-me como gosto de ler e como devo aproveitar todos os bocadinhos. Mesmo cansada leio sempre 1 ou 2 páginas antes de dormir, eu até gosto de vários estilos!
    Foi difícil consiliar a escola, a família e o trabalho.O certificado está na gaveta (de vez enquanto dou uma olhadela porque faz bem ao ego) mas foi muito gratificante. Foram 3 anos muito cansativos mas cruzei-me com pessoas sensacionais (outras nem por isso) mas tudo faz parte da experiência de vida.
    Só me resta: Muito Obrigada Professora Mª João!

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