terça-feira, 7 de abril de 2009

"Ilhas na bruma", o paludismo e a Ilha de São Tomé

óleo de Nezó, pintor de São Tomé

a Milly, no jardim de São Tomé

Paludismo


Hoje a Milly tem paludismo.

O corpo agita-se, estremece, o rosto molhado está frio, apesar da temperatura ser quente àquela hora do dia.
Os olhos dela, virados para o tecto, parecem nem me ver.

Está deitada no pequeno divã do quarto do anexo da minha casa, que tinha sido arranjado quando cheguei, mas que, pouco a pouco, a força da natureza deteriorara –o clima quente e húmido facilita a invasão de todos os bichos, as chuvas contínuas vão descolorindo as tintas, estragando os telhados e sujando as paredes que ficam de um tom acinzentado.



As redes mosquiteiras furadas pelas brincadeiras dos miúdos da Milly deixam entrar insectos de todos os tipos e, com certeza, ao cair da noite, enchem-se de mosquitos. De repente, levantam-se baratas vermelhas que voam à nossa frente e nos assustam. Vou descobri-las em todos os cantos, até mesmo na dispensa, apesar de limpa a toda a hora.

- Então, Milly?, perguntei, limpando-lhe a testa com o avental que pusera à volta da cabeça.
- Dói todo o osso de corpo, dôtôra..., articula com dificuldade. Dói cabeça, dói corpo muito. Tenho muita febre, dôtôra!

E tinha. Pus-lhe a mão na testa e escaldava. O suor perla-lhe o rosto, uma mosca tenta poisar-lhe na cara e ela sacode-a com um pano.
Logo de manhãzinha, antes de vir para o trabalho, fora fazer a análise, a “gota espessa”, como já aprendera a chamar-lhe.

Tal como sabia agora distinguir os diversos tipos de paludismo: disseram-me logo que, na Ilha, eram quatro : o malariae, o vivax, o falcíparo e o ovale...

O Nini trouxera o resultado.
- É "F6", dôtôra, foi o Sr. Alcântara que disse...

Era o falcíparo, o plasmodium falciparum, de grau 6, daí o “F6”.

Dei-lhe a Resochina, que estava habituada a tomar mas que nem sempre fazia efeito.

Era o remédio que se tomava como prevenção, ao chegar a São Tomé, mas que, ao fim de três anos, deixara de me fazer efeito.

Passei então a ter crises ligeiras, que nunca iam além de F2,F3, raramente F4, e que não davam febre alta.

Que voltavam quase todos os meses.

Já vira a Milly sofrer com febres.

Lembro-me da ida a casa dela, pela primeira vez. Estava doente, tinha paludismo.

Eu tinha chegado há pouco e ela trabalhava há pouco tempo lá em casa. Nessa manhã, não tinha vindo e mandara a Daý substituí-la, dizendo que estava muito mal.

- A mamã está muito doente, dôtôrra, está cheia de febre, tem muita dor no corpo! , disse a Dáy na sua voz um pouco rouca.

Assustei-me e decidi ir vê-la.

Estava deitada dentro de uma espécie de caixote, tapada com panos de cores e sem colchão, encostando o corpo dorido e a cabeça febril numa grande almofada de cetim cor de rosa. Foi esta a primeira visão que tive da casa dela e só, então, percebi como viviam.
- Não temos cama, dôtôra, dormimos aqui todos... Marido não tenho, foi embora.

Dormia com os três filhos, os dois miúdos para os pés, ela e a Daý para a cabeceira, como ela me explicou. Parecia envergonhada ao contar-me isto.
Os filhos à volta dela olhavam-me, de olhos arregalados, curiosos, ainda não me conheciam.

Era uma casa tosca, de madeira, construída sobre estacas, que era a forma de proteger as pobres habitações das enxurradas que desciam lá de cima, quando chegavam as grandes chuvas.
Ficava num bairro da cidade, na subida da estrada que ia para a Trindade, continuava a subir até às roça do Monte Café e, por fim, chegava à antiga Pousada.

À entrada, três degraus, de madeira inchada pela água, inclinados, inseguros, com pregos a espreitar, soltos, onde os sapatos se prendiam.

Num cubículo estava a mesa e um fogareiro de carvão, algumas panelas e pratos, garfos e colheres soltas -isto era cozinha e sala. O calor, a humidade, abafavam-nos, no pequeno quarto, de janela sem vidros nem mosquiteiro, apenas um pano branco pendurado a fazer de cortina. Tudo me confrangia.

Ali estava ela agora, outra vez, a sofrer. Agora o paludismo era, infelizmente, uma coisa minha conhecida.

A propósito disto, recordo uma crise de paludismo, a mais forte que tive. Nenhum tratamento dos que costumava fazer (Halfan era um deles, dos poucos que se encontravam na ilha e vinha de França) me fez efeito e acabei por tomar comprimidos de quinino.

Devíamos viajar ao Gabão no dia seguinte.

Devo confessar que ir ao Gabão era um dos poucos divertimentos que eram possíveis, fora da ilha.

Ia-se num aviãozinho da Força Aérea, a viagem era curta e levava-nos de repente ao continente africano, a um mundo completamente diferente do da ilha.

Libreville era uma grande cidade, com cafés, bons hotéis, lojas, mercados onde se encontrava todo o tipo de artesanato: desde os colares de malaquite com o seu verde baço fantástico, aos marfins; dos panos do Gabão de cores vivas e desenhos alegres, aos objectos de couro delicadamente trabalhado e às elegantes estatuetas cópia dos bronzes do Benim; dos objectos de ébano aos panos em batik.

Nessa madrugada, acordei a tremer, com a cabeça pesada e oca, e o corpo a doer. Como dizia a Milly, “dói todo o osso de corpo!”. Era verdade.
Na véspera, tínhamos ido a S. João dos Angolares e já ali me sentira mal, enjoada, sem saber de quê.
eu e o meu cão Zac, em São João dos Angolares

Quando nos levaram a ver o lagar de óleo de palma, recordo ter tido a sensação que levara uma pancada no estômago, tive que olhar para o lado, não suportava ver aquela papa amarela dourada a enrolar, a ser mexida, a girar a girar.

Pensei que ia vomitar, senti-me tonta, e já nem suportei comer o calulu que geralmente adorava, nem aguentava o cheiro que vinha das arcas frigoríficas quando as abriam para tirar bebidas frescas: cheiro a peixe seco, a verduras, ervas, tudo misturado com aquela cor melada e com cheiro do óleo de palma. Julguei que me sentia mal e ia desmaiar.

Era paludismo. Chegámos a casa e não consegui comer nada, deitei-me. Era paludismo. Foi nessa madrugada que adoeci.

Pela primeira vez na vida tive de tomar quinino porque era um "F4", grau que até aí nunca tivera, e o tratamento normal não resultou.

Durante dois dias a cabeça doeu e parecia-me ter lá dentro um rádio roufenho, a tocar, que não me deixava aperceber de nenhum outro ruído.

Perdi a noção das coisas, do tempo que passava, e, quando acordei, sem ter dado pela passagem do dia e da noite, vi que tinha a mão mordida –uma barata picara-me e jazia morta, ao lado da minha cama.


O meu fiel cão Zac, ufano, olhava-me, contente de me ver acordar e com a pata ainda em cima da barata, como se quisesse mostrar-me o que fizera por mim.

Tantas histórias...

Nunca esquecerei a ilha, nem a Milly, nem o paludismo.

______________


(Nota: O Plasmodium é um parasita humano unicelular protozoário, que infecta os eritrócitos, causando a Malária. É espalhado em seres humanos pela picada da fêmea do mosquito Anopheles... Há quatro espécies que infectam humanos: P. falciparum, P. vivax, P. ovale e P. malariae.)

1 comentário:

  1. Gosto da forma de escrever. É sincera, despretenciosa e com uma leveza muito própria que cobre o peso da emoção associada. Gosto.

    ResponderEliminar