sábado, 11 de abril de 2009

a vida era assim em S. Tomé...










um caroceiro à beira-mar



Viver em São Tomé não era sempre simples. Coisas boas, coisas menos boas, momentos inesquecíveis, momentos duros.
Como sempre. Como em toda a parte.
Não esqueço as paisagens belíssimas, as praias de areal branco, vasto, enquadrado de coqueiros de uma doçura de formas como nunca vi, de vegetação variada, o óbó (a floresta virgem), com todos os tons de verde, verde-cinza, verde-vivo, brilhante, na névoa, isto era a beleza de São Tomé.
Os aspectos difíceis também existiam a par da beleza.
A temperatura subia quase a 40º, com humidade de 90%, na estação das chuvas que durava oito meses, nos outro quatro meses (os meses sem "r", Maio, Junho, Julho e Agosto) era a estação da Gravana, fresca e seca, em que a temperatura rondava os vinte e tal graus.
Os são-tomenses adoeciam muito mais neste período, por estranho que pareça.
Diziam que era da secura do ar que fazia "arder a garganta", por causa das poeiras que o vento trazia.
A verdade é que tinham tosses estranhas, queixavam-se de frio e constipavam-se.
A única doença que baixava de virulência era o paludismo. A explicação era simples: as águas paradas das chuvas secavam, os pântanos também, os caules das bananeiras não guardavam já, na conchinha junto dos ramos, as gotinhas de água, sítios esses onde a fêmea do mosquito anofeles se escondia e depositava os ovos.
Nessa altura era possível jantar no jardim, estar ali a ver o céu estrelado com suas constelações variadas, diversas do hemisfério norte, como a constelação do Cruzeiro do Sul que eu considerava uma coisa misteriosa.
Ou ir passear à beira do Água Grande, ou ver a balaustrada da Baía de Ana Chaves, junto aos enormes caroceiros que tinham, nessa altura, maravilhosos tons de vermelho, rôxo, dourado, cor de ferrugem.
Tropeçávamos junto às raízes salientes que se alçavam do chão, levantando as pedrinhas brancas dos passeios junto ao mar.
Espalhavam-se ao longo da Rua Morta que ia desembocar no rio Água Grande, onde vivi uns meses antes de escolher a casa da Rua de Goa, não muito longe do velho Clube Náutico arruinado, casa onde vivi cinco anos.
Lembro uma história que escrevi nessa altura e que mais tarde juntei a outras num livrinho cuja publicação devo à minha amiga Alda Espirito Santo, que hoje já não existe e muita saudade me deixou.

"A Rua Morta

Chove na Rua Morta. Vejo passar em frente da janela, indiferentes, cobertos com sombrinhas sem varetas, tapando-se com sacos de plástico, uma simples folha de bananeira na cabeça, as pessoas da minha rua.
É a estação das chuvas.
Com ela vem o fascínio das histórias lidas na adolescência, a sugestão de aventura e de perigo.

Chove sempre. A chuva fina cai, sem parar, a humidade entranha-se no corpo, nos cabelos, forma pequenas gotas que pingam devagar ou se prendem, como diamantes minúsculos, nas teias de aranha dos ramos das árvores.
Pela rua abaixo, erguem-se caroceiros de troncos rugosos e folhas acetinadas, verdes e tenras, que as cabrinhas selvagens tentam roer junto às raízes salientes.
Têm frutos como amêndoas grandes que os miúdos cobiçam e vão buscar, trepando pela árvore até ao alto, equilibrando-se em malabarismos assustadores, ou fazem cair dos ramos lançando-lhes pedras. Pedras que, tantas vezes, ferem outro miúdo parado à espera.
É a estação das chuvas.

A chuva cai forte, bate nas caixas dos ares condicionados, com um ruído que lembra tambores de guerra. Torrentes de água suja descem pela rua inclinada. Longe, detrás de tudo, mas sempre presente, a floresta impenetrável, com a sua névoa eterna envolvendo a copa das árvores e, mais longe ainda, os picos das montanhas das quais nunca se vê o contorno definido.
Em cima, o céu cinzento, a alternar com azul, nos dias sufocantes, quando a chuva cai e é sorvida pela terra barrenta, gretada e seca. A floresta parece então afastar-se de nós e, no limiar do horizonte, o ôbô brilha em todos os tons de verde.

Em São Tomé, minha terra de passagem, que não aceitei ao chegar e que me fascinou, mais tarde, no mistério da vegetação, na doçura dos coqueiros inclinados sobre a areia branca das praias, na água azul, verde, ou cor de leite da baía Ana de Chaves, rubra ao poente.
Com a enorme acácia rubra ao lado da velha igrejinha desconsagrada.

Quantas vezes a renegarei? Quantas vezes me deixarei fascinar?

É a estação das chuvas.

Parece-me ouvir o mar, agora embravecido, ao longe, onde o céu escurece.

Os barcos baloiçam doidos no branco intenso da espuma. Da minha janela vejo passar as gentes da minha rua.
Continua a chover na Rua Morta.
(in "Ilhas na bruma", UNEAS, S.Tomé, 2006)

1 comentário:

  1. Eu tambem vivi em S. Tomé e revivi nas suas palavras os momentos que passei naquela ilha de encanto. obrigado.

    António Amorim

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