sábado, 9 de maio de 2009

as ruas da minha terra


As ruas da minha terra

Recordo os cheiros de certas ruas, a miséria mesmo ali ao lado, a rapariga grávida, saída há pouco da adolescência, rodeada de filhos, nascidos uns atrás dos outros e que, candidamente, à vizinha, que, ironizando sobre o estado dela, lhe perguntava: “Ó Mariazinha, por que tens tantos filhos?”, respondia: “Minha senhora, o que hei-de fazer? A minha vocação é ter filhos...”
Todos em rancho à volta, agarrando-se-lhe às saias, ou gatinhando, ranhosos, com ar doentio, a sair da casa escura, rés do chão sem janelas, com o cheiro a mofo e a couves que vinha lá de dentro.
Sentada numa cadeira baixinha, a mãe dela, ainda nova, magra, cinzenta, resignada, a remendar, a coser, à porta para ter um pouco de sol. Falava sempre com respeito ao meu pai que muitas vezes lhes fizera análises de graça e dava remédios. Eu fazia-lhe muitos cumprimentos, sorria, porque me parecia que lhe devesse dar qualquer coisa e não sabia o quê.

Havia ruas, lá para cima, para os lados do castelo, do qual se viam só as ruínas, com casas pobres e meninos descalços, mal vestidos, sujos, com calções rotos ou vestidinhos rasgados, que brincavam a puxar latas de sardinha e jogavam com uma bola de trapos ou arcos de arame, empurrados por uma varinha que fazia um ruído estranho nas pedras da rua.
Mulheres, que me pareciam todas velhas, sentadas em bancos, às portas, catavam os piolhos às filhas, com um pente muito fino que lhes arranhava a cabeça e elas gritavam, sacudindo as tranças desfeitas e agarrando uma boneca de trapos sem olhos.
Ou olhava e o espanto abria-me os olhos ao ver aqueles meninos que não tinham os brinquedos que eu tinha e que não tinham vestidos novos nem sapatos. Alguém me puxava pelo mão e me tirava dali.

Mas havia também outras ruas, alegres e que cheiravam bem, a flores e a bolos, a rua da Mouraria, por exemplo, que recordo cheia de luzes, enfeitada com grinaldas de flores de papel de lado a lado, vasos de mangerico perfumado, bandeirinhas espetadas na terra, os altares dos santos com panos e rendas, cheios de bonecos, de rifas, a rádio a tocar toda a noite. Era Junho, o tempo dos santos populares, e o meu pai levava-nos de rua em rua a ver os altares, deixava-nos saltar as fogueiras e íamos até ao Corro ver o bailarico e a banda.

Havia, mais longe, a rua da Sé, que descia do Largo da Sé que eu achava linda, no seu estilo entre o maneirista e o barroco, com duas torres que se erguiam para o céu azul. Era na rua da Sé que moravam os meus avós, uma rua inclinada com calçada de pedras cinzentas. Lembro-me das casas brancas e das janelas, de guilhotina, com seus vasos de malvas e de hortênsias azuis.

Paralela, descia do Largo a rua da Misericórdia, atravessada por um arco a meio, perto da igrejinha da Misericórdia da qual só lembro a porta de madeira antiga. Iam dar as duas ao Largo dos Correios, onde o meu avô teve um Café, o Café Central, e, daí, confluíam na rua Direita, ainda mais íngreme, de basalto reluzente do uso, e perigosa nos dias de chuva.
Muitas vezes caí nas pedras polidas e feri os joelhos, levantando-me envergonhada, a olhar para todos os lados. E recordo os burros, a puxar as carroças carregadas de fruta e hortaliças, que, ao descê-la, escorregavam, quase caindo e viam-se saltar as chispas das ferraduras riscando nas pedras do chão.
Com lojas, casas antigas, varandas de sacada bonitas, a rua Direita. Sei que numa delas nasceu o poeta José Duro de que só conhecia nessa altura a efígie, um medalhão de bronze que me parecia enorme, com um rosto delicado, nas costas de um banco de pedra no Passeio da Corredoura.
Passava por lá todo o movimento pois era, nessa altura, o centro da cidade e do comércio. Sempre cheia de gente a subir e a descer e de luzes à noite. Lembro-a, de Inverno, em noites nevoentas, quando descíamos do Café Central de volta a casa e a minha avó parava ao fundo da rua, na esquina com a subida para a Igreja de S. Lourenço, a comprar castanhas assadas.
A mulher que vendia as castanhas, numa barraca de madeira minúscula, agitava o assador e eu via o fumozinho subir e ouvia as brasas crepitar. A avó falava um pouco com a mulher e depois levava-nos a casa por essa subida que ia dar, pelo Largo do Teatro, à rua dos Canastreiros onde ficava a casa amarela.
Lembro ainda o cheiro das castanhas e sinto o calor no corpo e nas mãos bem cobertas com umas luvinhas de lã a segurar o embrulho de jornal cheio de castanhas.


2 comentários:

  1. Este já conhecia. Portalegre. Ainda hoje, quase assim. Mas por dentro...

    Beijinhos!!

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  2. Sim, sempre assim... Mas mudou alguma coisa?...
    Nós e os nossos lagóias... Bjs

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