domingo, 12 de julho de 2009

ainda a Casa Amarela : a tia Joana e Cesário Verde




Depois da morte da minha mãe, encontrámo-nos uma vez e ela disse-me:
- Se quiseres, conto-te as histórias da nossa família... Sei muita coisa! E ainda tenho boa memória...
Eu olhei para ela e sorri: ela continuava igual, depois daqueles anos todos, e com certeza teria a memória de sempre. Continuou:
- Agora, já não somos muitos, não é?... Do lado da tua avó, claro, que era o lado da minha mãe.
Respondi:
- Claro que quero! Já não há quase ninguém, tens razão...

E lembrei com saudades os meus avós a cantarem ao desafio, as histórias sem fim da tia Zézinha, as canções do tio Mouzinho, os tempos da minha infância inesquecível.
Ela era a prima da minha mãe, de quem sempre gostei, que nos acompanhara nesses tempos de meninas, e com quem ficara longos dias, chorosa, quando me separei da minha irmã, doente com tosse convulsa, depois de o meu pai me deixar ali, triste também ele.
A casa da tia Joana...
Começou uma longa história, entremeada de gargalhadas sonoras que me lembravam as da tia Joana, a sua mãe.
A da tia Joana que protestava, vivamente, ainda muito jovem, quando as irmãs lhe falavam de casamento:
- “Casamento? Sim, mas não quero cá estudantes! Quero casar com um homem rico que me venha buscar a cavalo... Quero ter uma charrette, ser uma senhora e viver numa quinta...”
Era uma mulher alta, de cabelos claros, nariz levemente adunco e a pele muito branca que eu me lembro de ver já de cabelos brancos, sempre cheia de pó-de-arroz e perfumada, vestida de tons claros, muito azul, lilás, verde-marinho, a dar gargalhadas, franzindo os olhos pequeninos num sorriso eterno.
Casou com um homem mais velho, rico, de pele tisnada, traços duros, mas que era ao mesmo tempo uma pessoa simples e doce, que tinha quintas e carroças e andava a cavalo.
Sei que a minha mãe aprendeu a andar a cavalo nos cavalos dele, e que as festas da família eram muitas vezes na quinta, que tinha muitos olivais, campos a perder de vista e ficava nos arredores de Portalegre, onde ainda fui.

Era Páscoa e lembro a festa, as flores, os rebuçados e os folares enfeitados com ovos pintados, outros em forma delagartos com amêndoas brancas a fazer de olhos, o pão-de-ló fofinho, e o cabritinho frito mais o ensopado...
Contara-me a tia Zézinha das festas que faziam no quintal da minha avó, na velha casa, um palácio, onde primeiro viveram -e cuja venda a minha avó nunca perdoara ao meu avô e quase chorava ao falar nela- que tinha um quintal lindo, cheio de árvores de frutos, escadarias, paredes brancas em volta, rosas, hortênsias e lírios roxos; dos almoços e das brincadeiras em que todos participavam, já casados, que acabavam com lutas de cascas de melancia ou de melão, escondidos detrás dos troncos das árvores.
Eu ria dessa maneira ingénua de brincar.
Espantava-me essa euforia do divertimento, o "carpe diem" que hoje se perdeu, em tempos hoje bem menos divertidos e bem mais cheios de violento aborrecimento, vazio e solidão.
Falava-me, agora, a minha prima da patinagem, dos passeios de barco nas charcas, das “burricadas” que faziam, na estrada que vai para a estação, onde ficava a quinta da tia Joana, ou à volta da Serra de S. Mamede, e eu pensava em flores brancas nos cabelos, como recordo a minha mãe, nas velhas fotografias, e imaginava os risos, a aflição da tia Leopoldina sempre com as suas toilettes pouco práticas, as brincadeiras e as quedas da tia Zézinha.

E ao querer imaginar, via as boninas e os campos vermelhos de papoilas, que o Monet pintou de modo insuperável, tal como elas viram, e pensava na poesia de Cesário Verde, que não resisto a pôr aqui:










Naquele picnic de burguesas,
houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampávamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!



(Lisboa, O Livro de Cesário Verde, 1887)

Ilustrações:

1. Berthe Morisot, as patinadoras

2. Monet, passeio de barco em Givérny
3. Monet, campo de papoulas

Sem comentários:

Enviar um comentário