quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Júlio Dinis e a Casa Amarela

































Júlio Dinis é outro escritor da minha infância. Que foi um prazer ler e muito me deu.
Dizem os manuais que foi o criador do romance "campesino" (rural) e, de facto, só "Uma Família Inglesa" é citadino (passa-se na cidade do Porto).
Mas mais importante do que isso é a força com que se afirmam os caracteres que põe em cena.
As suas personagens, tiradas, na sua maioria, da vida real, inspiradas nas pessoas com quem contactou e observou com cuidado, têm tanta naturalidade que muitas delas ainda hoje as "vemos". É o caso da tia Doroteia que aparece em "A Morgadinha dos Canaviais", imagem da tia, em casa de quem viveu um tempo, ou de Jenny, a maravilhosa Jenny de "Uma Família Inglesa", para a qual recebeu inspiração da sua prima e madrinha, Rita de Cássia. Ou Madalena e Cecília que ignoramos em quem se inspirou...
Escritor de análise psicológica preciosa, criador de mundos que eu tocara de perto -porque, vivendo perto do campo, fazendo férias em quintas, estavam-me próximos- e me interessavam; de personagens femininas cheias de contradições, de fraquezas, ou de grande rectidão; de ambientes verdadeiros.
Júlio Dinis viu (ou quis ver) sempre o mundo pelo prisma da fraternidade, do optimismo, dos sentimentos, do amor e da esperança. Isso para mim é positivo, sabe-me bem ler quando pego num livro dele.
Quanto à forma, é considerado um escritor de transição entre o romantismo e o realismo (click para ver).
Associo-o à minha infância e à Florinda e à minha casa amarela...
Foi um dos primeiros autores portugueses que li, com Camilo ("Doze casamentos Felizes" - sei lá porquê, foi um dos primeiros...), Alexandre Herculano e o “Eurico, o Presbítero” e a sua Hermengarda, “O Bobo", “O Arco de Sant’Ana" e "O Alfageme de Santarém", de Garrett, mais os "Contos" de Eça são os que recordo melhor desses tempos de leitura, quase à luz do fogão, diria...

Pois bem, os livros de Júlio Dinis lembram-me a Florinda...
Já aqui falei dela, pessoa inesquecível de inteligência e sensibilidade a quem faltou um pouco de beleza para ser mais feliz. Sofria muito com isso, era extremamente sensível à beleza, à elegância, à arte, gostando de música, pintura, era um ser belo no seu interior.
Gostava de aprender, imitava com admiração tudo o que nós fazíamos desde o andar de patins, às cópias, leituras e, mais tarde, quando chegámos ao Liceu, quis aprender algumas palavras de francês e de inglês.
Depois do jantar, o nosso serão passava-se muitas vezes na cozinha, sobretudo de Inverno, à braseira que lá estava debaixo da mesa redonda, junto da chaminé.
A braseira aquecia-nos mas o calor que o fogão de lenha mantinha durante horas era bem mais agradável, dando-nos um certo torpor. Mesmo apagado, por causa das brasas aquecia o ambiente todo e, sobretudo, as costas da Florinda que punha a cadeira de modo que se sentava quase em cima do fogão.
E começava a noite dos "trabalhos" de casa, a lição: cópias, ditados, leituras em voz alta ou, então, apenas leitura.
A minha irmã pequenina gostava de ditar e, mais do que tudo, de corrigir os erros da Florinda -que sublinhava com grossos traços de lápis vermelho.
- Flor! Tens cinco erros e dez faltas!, comunicava, contente.
- Não são erros, menina, é da letra, eu faço o “o” assim, com esta perninha...
E mostrava.
- Não é nada disso, falta-lhe mas é um “o”, puseste um "a"!
- Mas aqui está certo...
- Não, é erro, é uma falta de acento!, dizia sempre peremptória a pequenina, cheia de si.
Por vezes, os erros mereciam reguadas, dadas com uma tabuinha de madeira. A Florinda queixava-se "ai, ai", para ajudar à brincadeira, e a minha irmã ria.
E discutiam as duas até passarmos a outra distracção. Normalmente, era a leitura. Cada uma ia buscar o seu livro e ficávamos a ler, com os cotovelos encostados à camilha de cor clara, e o rádio a tocar baixinho.
A Rosalina começava a cabacear e dormia passados poucos minutos. Não conseguia ler um livro, apesar de ter aprendido connosco a ler e a contar. A Florinda embrenhava-se na história de “Os Fidalgos da Casa Mourisca” que passava, nessa altura, em folhetim radiofónico, e a entusiasmava. De vez em quando parava, a “pedir um significado”. O dicionário estava ao lado e todas corríamos a ver o que era. Às vezes, sabíamos o tal significado e ficávamos contentes a explicar à Florinda o que a palavra queria dizer.
Ela lia, atentamente, seguindo a leitura com um dedo que ia avançando, primeiro devagar, depois a uma certa velocidade. Aí, esquecia-se de pedir os significados.
Via as mãos dela vermelhas, brilhantes da gordura, gastas das lavagens, do uso de produtos que as estragavam. Ainda não havia cremes para as proteger, nem esfregões suaves: era o “espago”, a soda cáustica, a areia (para arear os tachos e ficarem brilhantes), e era a cré para polir os metais.
Eu pensava:
- Se calhar, vai sujar o livro...
Mas ela nunca deixava uma nódoa: lavava as mãos com sabão e limpava-as bem no avental antes do serão.
O livro dela (era dela, nós tínhamo-lo oferecido num Natal) estava amachucado nos cantos, com as páginas dobradas para “marcar” o sítio onde ficava, outras vezes enrodilhado porque pousava a cabeça em cima dele, adormecendo de repente.
Por fim, ficava só eu a ler e elas as duas a dormir. Eu era a última a largar os livros. A mais pequena fugira para as brincadeiras dela, a cantarolar, a mais velha impacientava-se, insatisfeita, e ia ter com os nossos pais à sala. Eu continuava a ler “A Morgadinha dos Canaviais”, engolindo páginas atrás de páginas.
A minha mãe chamava lá de dentro, mas nós não ouvímos: a Florinda e a Rosalina tinham adormecido profundamente e eu não queria ouvir nada.
Tinha que vir ela à cozinha acordá-las e dizer-me para ir já para a cama....
A Rosalina de olhos estremunhados e com as farripas da franja loira despenteadas espreguiçava-se. A Florinda, que tinha a cara deitada sobre o livro, bem agarrado com os dedos, resmungava que não estava a dormir.
Eu fingia não ouvir e continuava a ler, enrolando os cabelos num dedo, até a minha mãe ralhar.
- Já para a cama!
- É só mais um bocadinho, mamã, para acabar a página...
- Não.
Não valia a pena insistir, ela sabia bem que eu não ia só ler até ao fim da página. Levantava-me da cadeira, ia à sala arranjar a pasta, dizia "boa noite" e ia-me deitar.
Suspirava com o livro debaixo do braço, a caminho do nosso quarto.
O quarto estava às escuras, mas bastava a luz dos candeeiros da rua. Ia pôr o livro na estante em frente da minha cama, e despia-me. Sabia que a minha irmã mais velha estava acordada ainda. Começava já a sussurrar "Jana, Jana, quero falar só um bocadinho", dizia ela.
Tinha insónias e gostava de ficar a conversar comigo até adormecermos.

Passara mais um serão.
Desta vez com os livros de Júlio Dinis
e a sua Morgadinha dos Canaviais...
Ilustrações:
1. Cézanne, casa no campo
2. Mary Cassatt, o jardim
3. retrato de Júlio Dinis
4. capa de A Morgadinha dos Canaviais (Porto Editora)
5. capa de Uma Família Inglesa (Porto Editora)
6. Desenho de Júlio Dinis

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