sábado, 22 de agosto de 2009

Romance policial: novo capítulo de "os Olhos de Jade"






















CAPÍTULO 4

Joan foi até à janela e ficou a olhar para fora, absorta. Tinha desabafado e era como se tivesse ficado vazia, desinteressada das consequências do que dissera. O céu escurecia e uma ligeira névoa ia cobrindo os arbustos e as árvores despidas do jardim. Algumas folhas, cor de cobre, revolteavam ainda e caíam no chão, devagar.
-“Vai chover”, pensou.
Imaginou os campos verdes lá em baixo, na estrada para Arundel, a serpentear entre os tufos de árvores esguias, com os troncos invernais, cinzentos e sem folhas.
Alice observava-a, calada, mas tinha nos olhos um brilho intenso, como se pensasse nalguma coisa e a não quisesse revelar. De repente, disse:
- Joan, quero que saibas que estou ao pé de ti e que vou fazer tudo para te ajudar. Basta que digas o que precisas. Sinto-me muito sozinha...

Hesitou, como calculando se valia a pena continuar:

- Hoje penso que o Stephen não tem muito que ver comigo. Se é que alguma vez teve... As outras ficaram caladas. Pareciam surpreendidas.
- Tantos anos de vida em comum e vejo que nada sei dele. Aceitei-o, deslumbrada com a pessoa desinibida, extrovertida, que ele era. Era muito mais velho, dava-me uma sensação de segurança... Voltou a parar, hesitante. Custava-lhe abrir-se?

- Sim, vivi numa bola de vidro, fechando os olhos ao resto, nunca me importei... Estava a pensar: será que me deixei seduzir por uma pessoa sem escrúpulos?...
-Sem escrúpulos? Alice! Porquê?...
Emily protestara, espantada.
-E por que não? Ignoro de onde vem o dinheiro...Descobri-me rica, com objectos e roupas dispendiosas, e não sei a origem desse dinheiro. Perturba-me pensar nisso, neste momento, a verdade é que nunca me preocupei... É terrível pormo-nos a pensar... Uma coisa arrasta a outra...
Interrompeu-se, e ficou de boca aberta. Tinha falado como em transe. Helen afastou-se da janela, e tossiu, pouco à vontade. Emily tinha os olhos baixos e ia mexendo nos anéis.
-Enfim, é assim...
E continuou, decidida, encolhendo os ombros:
-Estou a falar demais, não é? Não sei o que me aconteceu, não tenho o hábito de me andar a queixar. Enfim, só queria que soubesses que sou tua amiga, Joan...
-É normal que fales de ti. Ainda bem que o fazes! Qual é o espanto? Todas falamos de nós...
Helen procurara quebrar o mal-estar que sentia, dizendo palavras. Alice continuou, como se não a tivesse ouvido.
-Tudo é mais complicado do que parece na vida... Por que é que se procuram certas pessoas? Dois estranhos, eu e ele. Seres tão diferentes. Afastámo-nos, e parecia que estávamos tão perto. O que é que nos uniu?
Tirou outro cigarro do maço e acendeu-o, abrindo o isqueiro, bruscamente, com um gesto seco.
-Alice...
Joan falava como se despertasse de um sonho. Não ouvira o desabafo dela, e sentiu-se mal. Chegou-se ao pé dela e disse:
-Desculpa, não estava a dar atenção...
-Oh! Não faz mal. Ouvimos tão pouco os outros, não é? Estou habituada, sabes? Normalmente não falo. O Stephen fala o tempo todo. Faz-me sentir insignificante. Se eu desaparecesse da face da terra, era uma coisa perfeitamente irrelevante. Sou um pequeno pormenor à superfície da terra...
E riu-se. Emily quase deu um salto do seu canto no sofá, a protestar:
-Estás parva?! Tu, um pormenor irrelevante? Que ideia!
-Sei muito bem o que digo, Emily. Para que é que eu sirvo? A Abigail faz-nos falta a todas, deixou-nos inconsoláveis, desorientadas... Mas eu? Desaparecia do mapa e era como se não tivesse acontecido nada...
E virando-se para Joan:
-Tu, Joan, sei que não pertences a esse tipo de pessoas egoístas. Sais à tua mãe, ela ouvia...Quero ajudar-te! Só isso...
Hesitou e continuou:
-Ou ajudar-me a mim, fazendo qualquer coisa por ti?
Alice pronunciara baixinho a última frase como se falasse apenas para si.

- Obrigada, Alice. Joan levantara-se e pousara-lhe a mão devagarinho no braço.

Helen, incomodada, foi à janela, depois passeou pela sala e começou a falar, agitando os braços e deitando cinzas de cigarro por toda a parte.
-E o teu pai, Joan? Que notícias tens dele? Nós não sabemos nada. É um mistério completo. O que faz, no meio disto tudo? Ainda é vivo, suponho...
Procurara outra conversa, custava-lhe ver a fragilidade de Alice.
-O meu pai?!...Desapareceu na bruma. Como os gorilas...
Ironizava mas a expressão dos olhos era séria e sentia-se amargura na voz.
-Não sejas assim! És tão severa com o teu pai!, protestou Emily.
-Não sou. Procuro apenas ser lúcida, objectiva. Eu tinha treze anos, o Michael dez, e ele foi-se embora. Abandonou-nos! Porquê? Outra mulher... Uma pretinha, como tu disseste!
- Eu?, espantou-se Helen.
- Não tem importância. Sei que andava lá por casa, muito bonita, dizia a mãe. Lembro-me dela vagamente. Ou não me quero lembrar... Acho que o meu pai só pensava nisso...
-Como é que sabes? És injusta! Ele amava a tua mãe!
Emily mexia-se no sofá e com a mão despenteava a franja de cabelos ruivos. Tinha os olhos brilhantes.
-Amava-a, amou-a sempre!, insistiu.
-Amava? É possível...Para mim, acabou... Nunca me escreveu, não quis saber quem é que eu era, se sofria... Está morto há muito tempo...
Afastou-se de Alice e voltou à janela da sala.
-Todos vamos desenvolvendo formas de egoísmo, não é? E arranjamos sempre desculpas... Por que é que eu não hei-de ser egoísta também?
Continuou, baixando a voz:
-O pior é que ainda hoje sofro de abandono. Eu precisava dele...
Parou e respirou fundo, sacudindo a cabeça.
-Mas neste momento não é nele que penso, nem em mim. O que me revolta é a minha mãe ter morrido! Revolto-me! Não aceito! Pensar que ela foi assassinada é-me insuportável! Não posso ficar parada, a olhar. Tenho que encontrar quem a matou e fazê-lo pagar!
Soluçou, enquanto dizia:
- E vai pagar!
-Calma, Joan. Custa-me pensar que a Abigail foi assassinada, mas percebo a tua raiva. Vou ajudar-te!
Alice chegara-se a ela e agarrava-lhe o rosto com as duas mãos, fixando-a nos olhos.
-Eu quero ajudar-te, ouviste? -insistiu.
Depois, foi encostar-se à pedra da lareira, de braços cruzados, de costas para as chamas, fitando as outras.
-E vocês não dizem nada? Falem!
Respirava com dificuldade.
-Não tens para aí uma bebida, Joan? Qualquer coisa mais forte que o chá...! Sinto-me mal...
Joan sobressaltou-se:
-Sentes-te mal? Só tenho estado preocupada comigo! É imperdoável... Alice estendeu a mão, acalmando-a:
-Não é nada, já passou!
-Eu também te vou ajudar! -exclamou Helen. É evidente! E a Emily também fará o que puder, não é? Diz qualquer coisa, Emily! Fala!
Emily, muito pálida, disse:
-É evidente que sim! Mas o quê, exactamente? O que é que nós podemos fazer?
-Pensar. Pôr as rodinhas a trabalhar! Recordar tudo, -explicou Alice, devagar. Não achas, Joan? Pensar nos mais pequenos pormenores. O jantar, por exemplo, foi importante!
-És capaz de ter razão! No jantar...
Emily suspirava. E acrescentou:
-Falou do James Bond... Em espiões, não foi?
Helen irritou-se:
-Por favor, Emily, não comeces a inventar! Espiões, a que propósito?!
-Sim, sim, falou dum filme! Ela referiu qualquer coisa sobre os diamantes. Nada dura para sempre... Só os diamantes...
-“Only diamonds are forever”... A Emily tem razão, é um filme do James Bond!
E Alice acrescentou, pensativa:
-Lembro-me disso. O que quereria dizer? Que tudo é efémero...
Joan olhava para elas, com um ar perdido.
-Pensar, sim, têm razão... Mas estou tão cansada...
-Pois estás, minha querida. Tens que descansar!, disse Emily. Eu dou-te umas gotinhas ligeiras para dormires melhor. Trago-as sempre na mala...
E chegou-se a Joan, solícita.
-Vou esperar que o Michael chegue, tenho tanta confiança nele! Cheguei ao limite dos nervos... Não consigo dormir há que tempos... Desde que soube da mãe... Sim, Emily, talvez as tuas gotinhas...
-Queres que eu fique contigo esta noite? Podíamos falar e dormias mais sossegada. Para não te sentires tão sozinha...
Helen tinha parado também em frente dela e fazia-lhe festas nos cabelos.
-Não, obrigada, fico bem sozinha. Aliás, não estou sozinha... A Mary só sai depois do jantar e o Gabriel à noite está em casa. E o Zurigo dorme na casa do jardim.
Suspirou e disse com ternura:
-E já falta pouco para chegar o Michael, o beduíno-do-deserto, como lhe chamava a mãe. Era o seu Lawrence das Arábias, sempre em aventuras, trocas e vendas... Eu era a princezinha...
A noite caíra e o nevoeiro invadia tudo. Só a luz amarela do lampião, frente à janela, brilhava. Joan olhava, como se a escuridão a atraísse. De repente, estremeceu.
-Está ali alguém!...
E apontava para o vidro da janela.
-Que disparate! Não tiras os olhos do jardim... São os teus nervos, protestou Emily, tens de dormir bem esta noite!
-Mas eu vi um rosto! Não sei, não tenho a certeza... Uma sombra...
O jardim estava vazio. Encolheu os ombros, e voltou a sentar-se.
-Sim, é um disparate! Foi com certeza impressão minha. Não se preocupem, estou bem. Muito nervosa...
E acrescentou:
-É tarde... Querem jantar?...Está tudo pronto...
Não havia convicção no tom com que as convidava. Preferia que se fossem embora, queria ficar só. Elas acabaram por se despedir.
Começara a chuviscar e o nevoeiro adensava-se. Helen abriu a porta do carro, sentou-se e ligou o motor. Emily entrou do outro lado. Silenciosas, apreensivas, não eram capazes de dizer nada. Só Alice procurava reagir e retomara a sua ironia. Entrou no Aston Martin prateado, virou-se para Joan e disse a rir:
-O carro à James Bond já tenho, agora é só entrar em acção!... Anima-te!
Joan sorriu, agitou a mão e ficou a olhar até os carros desaparecerem na curva. Fechou a porta, ficou com as mãos apoiadas na madeira gelada, a cabeça inclinada sobre o peito e os cabelos em cima dos olhos. Não conseguia parar de tremer.


Mary vinha pelo corredor. Era uma mulher de meia idade, baixa e magra, com cabelos deslavados, que precisavam de ser pintados. Tinha uns olhos claros, e uma expressão cansada e boa. Pousou-lhe a mão no ombro:
-Joan, sente-se bem? Quer que lhe traga o jantar, ou espera pelo senhor Gabriel?
-Traga, Mary, janto já. Não sei a que horas virá o Gabriel e quero deitar-me cedo, estou estoirada...
Jantou sozinha, ao fundo da mesa enorme, olhando as velas vermelhas a arder. Perdia-se nos pensamentos. Sombras projectavam-se na parede e ela tremia. Tinha frio. Quando acabou de comer, chamou Mary:
-Pode tirar a mesa e ir para casa, eu trato do resto.
Pensou outra vez que precisava era de estar consigo própria. Levantou-se da mesa e disse, preocupada:
-Mary, quer que a leve? É noite, não gosto que ande por aí sozinha, com o que aconteceu... -Joan, por amor de Deus, não se preocupe! Vou sempre sozinha a esta hora. É descer a azinhaga! Tenho a bicicleta, é um instante... Já fechei as portadas de madeira das janelas.
- Está bem.
- Olhe, Joan, deixo uma chave da porta da cozinha, na terrina da mesa da entrada. Eu levo a outra. Havia uma terceira chave, mas há uns tempos que não a vejo. Deve andar por aí. Até amanhã, Joan. Veja lá se dorme bem.
-Obrigada, vou tentar. Boa noite, Mary.
Mas fora ficando, sentada na sala, à espera que o tempo passasse.

Ilustrações:

1. Zianaida Serebriakova, jovem mulher (não resisti a "roubar" este rosto da Serebriakova, para a minha personagem, Joan...)

2. Hooper (outro "roubo", agora ao maravilhoso Hooper, que tem imagens para todas as circunstâncias: da solidão à ... solidão)

2 comentários:

  1. Porque somos nós, mulheres, sempre personagens complexas? doridamente complexas...

    Beijinhos

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  2. Um romance policial bem mais profundo do que o habitual.
    Para além do natural interesse pelo desenvolvimento da trama, momentos obrigatórios de reflexão e de delícia descritiva.

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