quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Mais aventuras do meu cão em São Tomé, na Cascata de São Nicolau...











Um dia resolvemos ir ver as cascatas de São Nicolau, muito famosas na Ilha, pela beleza da estrada e paisagem que leva até lá, através da floresta virgem, o ôbó.
E pela frescura das águas que caem do alto da montanha, límpidas.


Saímos cedo de casa, levámos um pequeno farnel, e seguimos pela picada de terra lamacenta, que contornava, em curvas e contracurvas, a montanha até ao pico da serra, envolto na névoa.
O caminho era estreito e, em muitas das passagens apertadas -que coincidiam muitas vezes com curvas-, não caberiam dois jeeps...

A paisagem era única, a vegetação inigualável na sua riqueza e variedade: árvores seculares, de um lado e do outro da estrada, ramos pendentes, lianas entrelaçadas com folhas ou fetos, trepadeiras enroscadas nos troncos. Tudo de cores variadíssimas, em que predominavam os tons do verde, de uma paleta completa de verdes.
Por vezes apareciam as flores, os frutos e lá vinha o amarelo, o laranja e o roxo e o encarnado.
Havia também o castanho dos troncos das árvores, das jaqueiras e das amoreiras, das acácias; o vermelho de outros; o cinzento amarelado do amplo tronco do ocá, madeira que serve para fazer as canoas de pesca, limitando-se muitas vezes os pescadores a escavá-las no próprio tronco inteiro...

O cheiro da terra húmida, coberta de musgo brilhante e de líquenes, nos sítios onde o sol não penetra, ou o perfume entontecedor das flores, no alto das ramadas, ou, ali mesmo, ao nosso lado, dos ibiscos, das begónias coloridas, os frutos maduros, já apodrecidos, com um cheiro adoçicado, intenso, quase insuportável de tão enjoativo.

À roda, o chilreio dos pássaros pequeninos -azuis, verdes, negros- envolviam-nos, quase murmúrios; o grasnar das garças cujo adejar branco adivinhávamos; o canto do bico-de-lacre, ou de algum piriquito; os guinchos de animais que não identificávamos, talvez os pequenos saguins que apareciam e logo fugiam, chegando até aos arredores da cidade.

Imaginava o ossôbó, o rouxinol da ilha, e o seu canto mavioso. O passarinho solitário que anda por montes e vales anunciando a chuva.
Nunca o vi mas ouvi falar muito dele em São Tomé: ele que enche os versos dos poetas da ilha. Descrevem-no como um poeta, também ele, na beleza dos sons, na música que canta o seu canto solitário, sentido ou feliz.

Sentíamos a lama vermelha pegajosa que se agarrava aos pneus, sujava os pára-lamas e os sapatos, se calhava descermos do carro, para ver alguma paisagem mais de perto, ou descansar as costas. Era como cimento acabado de fazer, grude, formando uma película imediatamente seca pelo calor.
O corpo começava a estar molhado, com um fiozinho de suor correndo nas omoplatas, brilhando gotinhas na testa.
O Zac ficava logo com as patitas cor de barro e, assim que voltava para o jeep, começava, conscienciosamente, a limpá-las, a puxar aqueles picos de pelos secos, lavando-se sem cessar.

Eu levava os olhos fixos na estrada, sempre um pouco inclinada para a frente tentando adivinhar se vinha alguém em sentido contrário; se o espaço daria para passarmos; se teria de fazer uma manobra. Manobra perigosa e que eu receava pois, para nos afastarmos do outro carro, seria necessário chegarmo-nos à beira do precipício que, do lado de fora da estrada, descia para o fundo, invisível e sem fim, do mesmo ôbó... O mar via-se por espaços e desaparecia logo no verde da floresta.

Foi grande o deslumbramento quando se nos deparou a clareira junto da cascata!
Ver o laguinho que se formara, a vegetação baixa de folhas redondas e brilhantes, os troncos altíssimos de alguma árvores que pareciam trepar por ali acima, paralelos às quedas de água que descem da montanha.
Os cipós pendurados, cruzando-se com os ramos, enrolando-se quais serpentes douradas; o barulho suave das águas a cair como se fossem ribeirinhos verticais: era tudo um sonho!

O Zac, cão de caça, rafeirinho, vai e vem, a cheirar tudo em sua volta, com certeza encantado com os odores desconhecidos, os insectos, as lagartixas...
De repente, sentimos um restolhar ali por perto e o Zac desaparece da nossa vista.

Ao fundo da ribanceira, um curso de água, forte. Ouvia-se o cascalhar sobre os seixos, mas não se conseguia ver nada tão cerrada a folhagem naquela zona.
Viam-se uns caminhitos por entre ao vegetação rasteira e adivinhavam-se os pedregulhos negros junto da ribeira que ali corre. Pedras escuras que, ao longo do caminho, víramos surgir do musgo ou do capim.
O sol abrira, o calor húmido abafava, o coração batia forte, sentia-me mal.
O Zac desaparecera!
Não se ouvia nada lá em baixo, só o marulhar da água. Descendo, descendo essa ribeira ia parar ao mar, lá longe em baixo...
Afogara-se? Quem sabe como seria a ribeira que ouvíamos correr? Caíra em cima de alguma rocha? Batera com a cabeça?
A angústia apertou-me a garganta. A expectativa de poucos minutos era insuportável: queria falar, gritar e não podia.

Por fim, ouvimos um barulhito e comecei a chamá-lo baixinho, quase sem respiração. Sentiu-se um movimento e ouviram-se as patas do Zac, a raspar na terra, ou na areia.
Ouvira-nos, e fazia-nos sinais. Animara-se porque sabia que não estava abandonado, ou perdido!
O tempo passou e não dávamos por ele, mas pareceu-me uma longa espera...
Pareceram-me séculos!
Mais barulho, um restolhar mais forte e lá vemos espreitar, mesmo ao fundo, a cabeça e o pelo fulvo do meu cão...

Vai subindo, fincando as patas no terreno amolecido, avança e cai outra vez para o fundo.
Eu, entretanto, comecei a descer, sentada na terra ia escorregando e fincando bem os calcanhares nas saliências que apareciam.
O Manuel atara-me o cinto dele ao pulso, e ficou a segurar. Tudo absurdo: se eu caísse, ele viria atrás de mim pela ribanceira abaixo...
Continuámos, eu e o Zac, cada um de seu lado, um a subir o outro a descer... Mas a um ritmo tão lento que o suor me pingava da testa e encharcava a blusa.
Ele subia, eu escorregava um pouco mais, e cada vez estávamos mais próximos.
Falava-lhe sempre: “Já aqui vou, Zac! Anda, meu lindo, sobe...”

Ele não ladrava, mas continuava a vir, a resvalar e a subir, cada vez mais alto, cada vez mais perto, pelos tais caminhos.
Até que, milagre!, consegui agarrar a trela de couro que se lhe cruzava nas costas e era um apoio seguro.
Salvo?!
Puxei com força e agarrei-o ao peito. O principal estava feito, agora era voltar para a estrada, com ele bem agarrado arrastando as costas pela ladeira, em sentido inverso... Segura –e insegura- pelo cinto de couro que o Manuel agarrava, agora com as duas mãos ao mesmo tempo!
Parecia impossível!
Era como se o Zac ressuscitasse. Abraçámo-nos os três. Acho que ríamos e chorávamos. Os três, claro!
Nunca mais voltámos à Cascata de S. Nicolau!

Mas deixo-vos algumas imagens: da cascata, do Zac e do ôbó, e dois poemas do poeta são-tomense, Marcelo da Veiga, que é um grande poeta!

Ossôbó

Ossôbó é só
É só o ossôbó
Só!
Rente às nuvens, rente,
Não vê mais em volta
Que a nuvem que passa,
Corre...
Vive assim mesmo
Uma vida a esmo
Ossôbó!
Se algum senhor traça
Na voz que mal solta
No ar se perde, fica,
No ar morre!
É só o ossôbó,
Só!...

(Òmònó, 1928)

Quando a tarde desce,
Na alma a ilusão adormece.
Vale mas deixá-la assim...
Porque, se acorda, é em ais;
Vem como dum sonho ruim:
Não tem viço mais...

(Príncipe, 1944)

(Nota: O livro de Marcelo da Veiga, de onde retirei os versos, chama-se “O Canto do Ossôbó”, e foi publicado em 1989, em Lisboa, pelo editor ALAC, na colecção “Para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”, com o patrocínio da Câmara Municipal da Amadora)




1 comentário:

  1. Como eu compreendo o sofrimento aflito que tão bem descreve... Os cães tornam-se familiares de facto (ou deveria dizer mais importantes do que alguns familiares?...)
    Beijinhos e SAUDADES

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