quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Um Nobel que vale a pena ler: Le Clézio, Prémio Nobel em 2008


















Foi, sem dúvida, um Nobel inesperado o de 2008. Mas um Prémio Nobel que vale a pena ler!

Le Clézio vivia afastado das "feiras literárias" e, desde o Prémio Renaudot que recebera em 1967, com 23 anos, escrevia sem preocupações de vir a ser isto ou aquilo.
Escrevia simplesmente. Contava histórias.

Correu o mundo, viveu em sítios muito diversos e observava o que via.
A Academia Sueca sublinha, pela voz do seu secretário permanente, as razões da atribuiçao do prémio:

"As suas obras têm um carácter cosmopolita. Francês, sim, porém mais do que isso, um viajante, um cidadão do mundo, um nómada".









Cidadão do mundo, que ama esse mundo e o procura entender. Nómada que nasce em Nice em 13 de Abril de 1940, parte aos 8 anos com a família para a Nigéria, vive em Inglaterra onde estuda inglês numa universidade britânica, vai ensinar para Bangkok, depois Cidade do México, Boston, Austin e Albuquerque, por exemplo .




Le Clézio passou longos períodos no México e na América Central, e, em 1975, casou-se com uma marroquina.

Normalmente, nesse percurso de "nómada", debruçava-se sobre os problemas ligados ao homem, ao seu mal de viver. Falava dos que viviam mal, sozinhos, abandonados pela sorte, ofendidos, insultados...

Vou dizer-vos algumas coisas que sei dele.
Recorro, para a biografia, ao catálogo da "1ª Exposição dedicada em França à obra de Le Clézio, em Câteaulin, Finisterra, Bretanha" (e a outros livros, claro).
Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prémio Nobel de Literatura em 2008, nasceu em Nice, mas as suas origens levam-no às Ilhas Maurício, onde nasceram os pais.

Formou-se em Letras e, em 1963, com 23 anos de idade, ganhou o prémio literário Renaudot –prémio de literatura francês de grande importância- atribuído ao livro Le Procès-verbal (O Interrogatório).

Escreveu contos, novelas, romances, ensaios.
Vive hoje em Albuquerque, a maior cidade do Estado Americano do Novo México, e continua a viajar frequentemente até às Ilhas Maurício e a Nice.
A família de J.M.G Le Clézio é de origem bretã, como no fundo as consonâncias do seu nome fazem adivinhar (o nome Le Clézio indicaria a “passagem vedada” do território pertencente a uma família, clã, fechada com pedras, depois com ramos e depois com uma vala: em bretão “kleuz”, em galês “Clawd” e em céltico “Klado”).
A origem da família situa-se muito provavelmente no departamento de Morbihan, perto de Neuillac e de Noyal-Pontivy onde existe um lugarejo que tem aliás o nome de Le Clézio.

Os seus antepassados atravessaram essa vedação, emigrando na sua maioria antes da Revolução Francesa.
Um deles, François Alexis, não querendo submeter-se a um decreto da Convenção que decretava que se deviam usar os cabelos curtos, exilou-se em 1798. De viagem para as Índias pára na Ilha Maurício, então chamada Ilha de França. Onde se torna comerciante-armador de barcos.
Mais tarde, um dos seus descendentes –um dos bisavós de J.G, juiz, vai à procura do ouro, em Rodrigues.
Como não sentir predisposição para escrever e contar e sonhar histórias com um passado tão aventuroso e fantástico??
Viveu fora, errou de país em país, vagueou, percorreu mundos, "viveu" várias vidas.
Contou histórias que se passavam nos bairros pobres, nas "cités" desamparadas, falou de vidas difíceis, histórias umas atrás das outras, falando da dor de viver, de estar só, de ninguém pensar em nós...

É disso tudo que fala em "La Ronde et Autres Faits Divers".
Os fait divers as rubricas que enchem as páginas dos jornais: morreu, fugiu, foi violada, roubou, deu à luz num canto duma escada ou num vagão de mercadorias, etc etc...
São estes faits divers em quem já ninguém repara -e que, apenas, se lêem distraidamente, passando a outra notícia, esperando o jornal do dia seguinte com mais desses "faits divers" -que ele desenvolve e lança à cara do leitor. Agride-nos. Para acordarmos? E vermos?
É, muitas vezes doloroso lê-lo.
Por que sofrem estas personagens?
Porque se sentem sós. Mesmo nas cidades as pessoas estão sozinhas, rodeadas de betão, de casas aparentemente vazias, com janelas cerradas, "cegas" ao que se passa lá fora, ao que acontece aos outros.
Vejam:
"À beira do rio seco, há a cité de H.L.M. (*). É uma verdadeira cité em si mesma, com dezenas de edifícios, grandes falésias de betão cinzento empoleiradas sobre espalnadas de alcatrão, no meio da paisagem de colinas de pedras, estradas, pontes com o leito do rio de seixos empoeirados, ao lado da fábrica de cremação que deixa flutuar a sua nuvem acre e pesada por cima do vale. Aqui está-se longe do mar., longe da cidade, longe da liberdade, longe mesmo dos homens pois mais parece uma cidade deserta. Talvez não haja mesmo ninguém na verdade, ninguém nos prédios cinzentos com milhares de janelas rectangulares, ninguém nas escadas, nos ascensores e ninguém ainda nos parkings onde estão arrumados os carros? "
Porque a ofensa que é feita a Catherine (no conto Ariane) não é presenciada por ninguém...
(*) H.L.M. -iniciais de "habitation à loyer moyen", isto é: casas de rendas baixas.
(**) "cité" -é o nome dado aos "bairros" que ficam nos arredores das grandes cidades, muitas vezes degradados, cheios de problemas sociais...
As suas personagens sofrem...
Por ofensas variadas, faits divers para os outros...
Alguém foi violado ou magoado, insultado...
Duas jovens fogem de casa para conhecer o mundo não sabem o que fazer da liberdade...
Uma jovem mulher dá à luz, sozinha, com um cão na moquette do seu carro-caravana...
Uma miúda de moto, tenta roubar uma mala de mão e...

Esta última história, que se intitula exactamente La Ronde é uma história de abandono, de indiferença, de jovens saídas da adolescência sem horizontes, sem marcos na vida, sem ninguém que se lembre que elas existem. Vidas banais, cinzentas, de jovens correndo à procura duma aventura qualquer com que encher as vidas vazias, correndo atrás de uma diversão cada dia diferente, sem sentido, como a vida que vivem.
Desta vez, Martine tem que vencer o que ela considera um exame, uma prova. Como se o mundo esperasse um gesto dela! Tem que acontecer qualquer coisa!, pensa, antes de se decidir. Medo?
Mas, a rua da Liberdade está tão calma...
Sim, "la rue de la Liberté est calme"...

Um dia de sol. As casas, de paredes brancas reflectem a dureza desse sol escaldante, têm as persianas fechadas, como olhos que espreitam indiferentes, hora em que a cidade está deserta e mete medo, é fria apesar do calor do sol que bate como uma pedra na calçada, nas paredes, cortante.
Os outros não vêem nada, fecham-se nas suas casas de persianas fechadas, e esperam...
Dentro dos carros fechados, outros espreitam...

São "os outros" que empurram Martine e Titi para a frente. No vazio que de repente lhes parece ameaçador: primeiro "intenso", depois "angustiante", finalmente "estridente" dentro dela.

São eles que as empurram, que as "obrigam" a enfrentar a fatalidade...

A Martine nada lhe interessa. Chegar atrasada ao curso? Que importa? E se ela e Titi forem expulsas da escola?, pensa. O coração bate-lhe no peito. Pânico. Mas, no fundo, o que importa?No fim e ao cabo, é tudo a mesma coisa... Aborrece-se. É-lhe indiferente...
Decidem ir fazer a "ronda": acelerar na motoreta, pela avenida deserta, ir até ao fundo, girar em volta da praça e voltar para trás a toda a velocidade, num velocípede gasto e sem força, velho, emprestado pelo namorado duma delas.

Tudo é preparado para o desfecho. Na cidade vazia e escaldante, ouve-se ao longe o ruído do autocarro que se aproxima. Uma velha vestida de azul e de malinha na mão hesita se há-de parar para apanhar o autocarro. Da garagem ao fundo no cruzamento um camião de mudanças avança ronceiro na subida.
Os dados estão lançados, resta-nos seguir e ficar a observar...
As outras histórias deste livro de histórias são também acontecimentos banais, tão banais que ninguém dá por eles: Moloch, L'échappé, Ariane, Villa Aurore, Le jeu d'Anne, La grande vie, Le passeur, O voleur, voleur, quelle vie est la tienne?(***), Orlamonde e David.

(***) entrevista feita pelo autor a um pescador português, nascido na Ericeira... Que, à procura de vida melhor, errou pelo mundo: Bélgica, Austrália, Canadá, Paris... E acabou ladrão...
No final, o herói lembra uma canção que o pai lhe cantava quando ele era miúdo, na Ericeira:
Ó ladrão, ladrão
que vida é a tua?
comer e beber,
ó trilintim,
passear na rua...

O voleur, voleur, quelle vie est la tienne?
Era meia-noite
quando o ladrão veio
Beateu três pancadas
à porta do meio.
(...)
E assim acaba o conto...

Le Clézio, J. M. G., La Ronde Et Autres Faits Divers, Gallimard colecção Le Chemin, Paris, 1982
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Outras obras:

"Le procès-verbal" ("O Interrogatório"), de 1963,
La fièvre" (1965),
"Terra Amata" (1967),
"La Guerre" (1970),
"Désert" (1980),
"Le Chercheur d'or" (1985),
"Onitsha" (1991),
"Etoile Errante" (1992),
"Le Poisson d'or" (1996),
"Voyage à Rodrigues" (1986),
"Diego et Frida" (1985),
"Révolutions" (2003),
"Ritournelle de la faim" (2008).

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