quinta-feira, 20 de maio de 2010

Histórias da Casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros (3)


tinha chegado a Primavera! (pintor japonês, Kojima, floresta
Portalegre, vista da Serra

O Outono passara, o Inverno fora com certeza longo e frio, a chuva caíra, o nevoeiro subia e descia pela encosta da Serra.
Aconchegava-me no meu cantinho da carteira, de queixo apoiado na mão, a olhar para fora.
E um dia, sem já o esperar, aparecia o céu brilhante da Primavera!
Um “azul cerúleo” como a minha mãe gostava de lhe chamar.
As andorinhas cortavam os ares, as asas negras riscavam o azul de um lado para o outro, ouvíamos o chilrear, assim que algum professor abria as janelas.

Eu não conseguia estar quieta na carteira. O tempo custava a passar, sentia-me impaciente. Queria era voltar para casa, ir pôr-me à janela a ver se as andorinhas voltavam a fazer o ninho por cima da janela do nosso quarto.
Foi nessa Primavera, nesse primeiro ano de liceu, que começou a mania dos bichos da seda.

Talvez alguma menina tenha aparecido com uma caixinha e mostrasse os bichos minúsculos a escorregar pelas folhas verdes de amoreira.

Não sei como arranjámos o dinheiro, eu e a minha irmã, mas de certeza que custavam poucos tostões que nos era fácil conseguir, pois tínhamos sempre os nossos mealheiros.
Lá fomos, à saída do Liceu, como nos indicaram, à Rua dos Sapateiros, que era uma rua de casas pequenas e baixas, muito brancas, com portas de postigo –hoje na sua maioria metalizadas-, às vezes com um degrau, outras, com uma janela em baixo e duas no primeiro andar.
Viemos para casa com uma caixa cheia de bichinhos que pareciam formigas compridas a retorcer-se, e um montinho de folhas de amoreira que o sapateiro nos ofereceu.
Tinham uma cabecinha com pintinhas pretas, parecia-me, e o corpo ondulava deslocando-se no aveludado da folha.

Logo à chegada, apressadas, falando as duas ao mesmo tempo tal era a excitação, fomos arrumá-los numa caixa de camisas do meu pai e eles começaram a passear-se, a fazer buraquinhos nas folhas, comendo tudo, até deixarem apenas as nervuras. Ficávamos a olhar esta novidade, esquecendo tudo o resto.

A Florinda tinha agora que trazer do mercado um molho de folhas de amoreira.

O tempo passava a correr na Primavera, os bichos da seda cresciam depressa, até que um dia dei com eles a enrolarem-se em fios brilhantes que não percebia de onde vinham.

Assustámo-nos, parecia que iam perdendo a vida aos poucos, moles, sem energia.
Foi com certeza o meu pai que nos explicou que os fios eram a saliva do bicho da seda, que já era seda mesmo; que iam preparar os casulos onde ficariam fechados, formando uma crisálida, até nascer a borboleta.

Dentro em pouco, todos os nossos bichos estavam nuns rolos amarelos de seda brilhante e de toque muito suave. Arrumámos as caixas no alto de um armário e esquecemos os bichos da seda...


Um dia vimos voar, junto ao tecto, umas borboletas de asas pesadas, amarelinhas claras, sem graça, quase da cor dos casulos. As asas pareceram-me pesadas, asas que nada tinham a ver com a leveza quase transparente das borboletas que, lá por fora, nos campos, voavam de flor em flor, salpicando tudo de poeira dourada.

Quando tirámos as caixas para baixo, havia umas pintas brancas do tamanho de cabeças de alfinetes, por toda a parte.
Ou seriam pretas? Hoje já nem me lembro bem...
O meu pai voltou a explicar: eram os ovos de onde iriam nascer no ano seguinte outros bichinhos.
Confesso que o entusiasmo pelos bichos da seda se perdera. Arrumámos as caixas no tal armário e nunca mais pensámos nisso.
Nesse ano, claro.
Tínhamos a Primavera, depois viria o Verão e a nossa cidade esperava-nos...
Portalegre, Rua Direita, talvez nos tempos do meu avô

3 comentários:

  1. Saudações nobre amiga e parabéns pelo belo trabalho que aqui encontro.Sempre que posso me deleito com estas maravilhosas informações e apreço de postagens bem como o prazer de encontrar novidades. Um grande abraço e fique na infinita paz.
    Namastê.

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  2. Obrigada, nobre amigo. Fico feliz pelas suas palavras.
    Uma boa noite para si.
    Namastê?

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  3. Como é bom encontrar-me nestes textos (desculpe!! Mas é também o meu mundo!!) Obrigada pela prosa sentida!
    Beijinhos
    Luísa

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