quarta-feira, 21 de julho de 2010

José Rodrigues Miguéis e Uma Aventura Inquietante...


Lembrando alguns escritores policiais portugueses, veio-me de repente a imagem de um título: “Uma aventura inquietante”.

O autor do romance é José Rodrigues Miguéis. Miguéis não é um escritor de livros policiais mas escreveu esta obra, de mistério e suspense.

Fui buscar o livro á estante, e reli-o, devo dizer, com imenso prazer.

J.R. Miguéis é um grande escritor da literatura portuguesa. Bastará recordar obras como "Léah", "Páscoa Feliz", "Gente de terceira classe" -entre tantas outras...

Encontrei também o livro que Mário Neves escreveu sobre ele, obra muito interessante: “José Rodrigues Miguéis Vida e Obra” (Ed. Caminho, 1990).

Para saber um pouco mais da vida de Miguéis –contada por um amigo, como Mário neves foi.

Nasce em Alfama, na Rua da Saudade, nº 13, em 9 de Dezembro de 1901 e morre em Nova Iorque em 28 de Outubro de 1980...

Seguindo Mário Neves, "vi" a sua passagem de dois anos por Bruxelas.

Depois, a sua aventura americana de quase toda a vida.

Entusiasmei-me, imaginando-o a deambular por N.Y., a tentar perceber aquele mundo e novo, enquanto esperava que a mulher saísse do trabalho, no centro de Manhatan.

A conquista da cidade pouco a pouco, os novos amigos, os espaços enormes e tão diversos; com as saudades de Lisboa, dos velhos amigos, dos cafés e das conversas, pelas ruelas do Bairro Alto, até altas horas da noite...

Viria a formar-se nesta cidade em Direito, em 1924. Todavia, nunca exerceria de forma sistemática profissão nesta área, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia.

Nascido em Vai obter uma licenciatura na Universidade de Bruxelas, em 1933, em Ciências Pedagógicas, sonho da sua vida a Pedagogia e as Ciências da Educação....

Dirige, posteriormente, com Raul Brandão, um conjunto inacabado de Leituras Primárias, obra que nunca viria a ser aprovada pelo governo.

Mais tarde, dirigiu, com Raul Brandão, seu amigo, um conjunto inacabado de Leituras Primárias, obra que nunca viria a ser aprovada pelo governo.

Pertenceu ao chamado grupo da Seara Nova, ao lado de grandes autores como António Sérgio, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa ou Raul Proença.

Miguéis num quiosque de New Yoork

Deixa Lisboa em 1935 a caminho dos Estados Unidos, onde vai viver muitos anos.

Adapta-se à vida trepidante da cidade, depois da pacatez provinciana de Lisboa? Nem sempre com facilidade. De início faltam-lhe os tais cafés lisboetas, a “cavaqueira” com os amigos, as discussões intermináveis.

Cria o seu modo de viver novo: organiza um regime metódico de vida e de trabalho, rigorosamente programado.

Levantava-se cedo e trabalhava, em casa, na sua máquina de escrever antiquada (colaborava nessa altura nas Selecções do Reader’s Digest), e, só ao fim da tarde, se permitia um longo passeio.

Ia esperar Camila, a segunda mulher, e juntos andavam pelas ruas.

Aos que lhe diziam que fazia mal não “apanhar sol”, respondia com a frase do seu amigo Raul Brandão: “o sol está dentro de nós...”

Grande leitor, admirava Stendhal, Proust, Malraux, não esquecendo os portugueses Eça de Queirós e Raul brandão. E os russos que considerava mestres, como também os novos mestres americanos de que reconhece a influència.

Ouvia Bach, Vivaldi... O que me interessa assinalar, porque o herói da tal aventura inquietante – Zacarias de Almeida- tem os mesmos gostos musicais e de leituras

Observador atento, realista na descrição, a sua ironia recorda a de Eça, aliada porém a uma certa amargura e melancolia, quase pessimismo (de Brandão) e a uma preocupação de “análise” das situações e das psiques humanas, dentro do que foi outra sua influência: os escritores “presencistas” (Régio, Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões, por exemplo).

De que fala "Uma Aventura Inquietante"?

Resumindo brevemente a intriga:

Uma mulher de origem russa, Mme Pierkowka, é encontrada morta, de madrugada, no lago gelado do Parque de Woluveel, no centro de Bruxelas.

O comissário Petitjean e o seu ajudante Rigoux vão encarregar-se do inquérito.

Aí é que entra na aventura Zacarias, emigrante portuguès, que vai encontrar a carteira vazia da morta, longe do local do crieme... Só a entrega no comissariado dois ou três dias depoi, por distracção, mas, a partir daí, o suspeito número um é ele...

Porque ele -português, estrangeiro, emigrante- é o suspeito ideal!

A opinião pública protestava e... “mais vale um suspeito na mão”, pensa a polícia, do que nada!

Miguéis conhece a Bélgica, viveu lá. Do seu livro, “solta-se” uma crítica da cidade burguesa e indiferente, e de certa forma de racismo “latente”, mas acentuada.

Perante o crime crapuloso, a voz comum acusa, protesta:


Bruxelas está infectada!(...) Já não se pode viver tranquilo (pg.23)”.

Culpa da Guerra que acabara há pouco?

“Culpa dos estrangeiros...”

Uns dizem, à esquina:

Esta terra, antigamente, era um paraíso!. Nem de crimes se falava. Isso sim! E vejam lá se chovia desta maneira: a artilharia desarranjou tudo também lá por cima...”

E as velhas comadres (os gansos, como lhes chama o autor) continuam:

E o cinema? Tem feito muito mal à mocidade. Deviam acabar com essa peste!”

E, à porta do talho, esganiçam-se as velhas:

O país está infestado de estrangeiros. Têm sido a nossa desgraça. Só cá vêm para nos fazer a vida cara!”

Grasna, respondendo, outro “ganso”:

A quem a senhora o diz! É uma corja de polacos, judeus, italianos russos. Um inferno! Ah! Esta terra era uma bênção. Agora é deles. Era acabar-lhes com a raça! Rua! Vão roubar prà sua terra.”

Como é antiga esta voz e como perdura!...

O estrangeiro! O pária! O cigano! OO judeu! O maltês...

O que vem de fora... O forasteiro...

Foram sempre os culpados em todas as épocas.

Diz o autor, na sua ironia:

A população inquieta-se e com razão. Há tanto chômeur, tanto estrangeiro. Oh, estes estrangeiros!

Não nos espanta pois, se no meio disto, o suspeito é um português...

Fora, a multidão grita: “Assassino! Estrangeiro! Métèque! À forca! Abaixo os estrangeiros!”

Pobre português emigrante...

Um português tranquilo, metódico, solitário que gosta de ouvir Schuman, Bach, Vivaldi e Debussy...

Que lê Stendhal e que quer é que não o incomodem!

Que se considera a si próprio um “anarquista transcendente” (ou, não seria melhor, simplesmente, “um egoísta”?, interroga-se).

A gostosa monotonia de sempre: o escritório, um café, as revistas e os livros, uma conversa anónima, uma volta pelos bulevares atormentados e, sobretudo, os serões pacatos de solteirão em pantufas, diante da mica doirada do fogão –ah, na verdade, em pouco consiste a felicidade de um homem de escassas ambições e pouco mais dinheiro!”

E lembro as idas de Zacarias ao restaurante russo em Bruxelas, o Restaurant Slave, ouvir a “orquestra de balalaicas exiladas, porque, segundo explica ao comissário que o interroga sobre esses hábitos estranhos: nós, portugueses, temos imenso que ver com os russos, a confusão mental, por exemplo, embora, hélas, sem Dostoievski”...

Zacarias que decide "defender-se" a si próprio e que vai analisar todas as provas do "inquérito" e interpretá-las a seu modo. partindo do pressuposto: "se não fui eu o assassino, alguém foi.... vamos então ver quem foi!"

E nós partimos atrás deste detective improvisado...

Diz Mário Neves: o maior prazer da sua vida era escrever – “a actividade em que procurava associar as ideias com múltiplas recordações”. Era a sua obsessão. Dizia: “Um dia que não puder escrever vai ser o diabo!”

E escreve muito bem...

Dá muito bem as personagens. O retrato psicológico de Zacarias, -envolvido em ternura, simpatia e auto-ironia, é fantástico-, os ambientes, a Bruxelas enevoada dos dias de Inverno, o céu cinzento e baixo e a indiferença, recordando o que dizia Jacques Brel...

("Ces Gens-là", Jacques Brel)

http://www.youtube.com/watch?v=NfwW76JzVQI

São três e 45 da manhã. Um ventinho agudo desliza lá em cima, no asfalto deserto e polido da Avenida de Tervueren. Está como é uso dizer-se “um tempo de cão”. Ninguém pelas ruas. Fiel aos seus hábitos, a cidade faz ó-ó no quente. Fachadas herméticas, impenetráveis. Só as vidraças limpinhas reluzem como olhos atentos. O frio corta. Os lampiões de gás tiritam, soluçam no vento.”

A cidade desumanizada dorme, na indiferença do que se passa cá fora.

Sim, ao quentinho, a cidade dorme tranquila.

E a atmosfera de humidade, de frio, de desconforto cá fora, de frio, perseguem-nos ao longo das páginas, entranhando-se-nos no corpo...

São claras, nesta obra, as influências de autores como Dostoievski ou Raul Brandão.

Em "Páscoa Feliz" e "Uma Aventura inquietante" mostra sinais do "psicologismo" que também interessa os seus contemporâneos "presencistas".


Nota:


O romance "Uma aventura inquietante" foi publicado no semanário “O diabo” entre 16 de Setembro de 1934 e 12 de Julho de 1936.

Desde que se iniciou o folhetim até 23 de Junho de 1935 a publicação foi regular. Nessa data, devido à partida do escritor para a América, o romance ficou inacabado (...)


Só nessa altura se sabe quem era o autor do romance.

Porque José Rodrigues Miguéis iniciara a publicação da obra sob o pseudónimo de Ch. Vander Bosch, autor belga, aparecendo o seu nome apenas como "tradutor" da obra.

Em 1958 o romance vai surgir em livro, publicado pelas "Iniciativas Editoriais", com um "prefácio" e um "posfácio" muito interessante do autor...

http://www.youtube.com/watch?v=NfwW76JzVQI

6 comentários:

  1. Gosto muito de te "ouvir" e até de te "sonhar"!
    És uma magnífica contadora de histórias.Beijinhos

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  2. Agradeço do coração, minha querida! Fico tão contente...Eu gosto é de contar histórias, ainda bem que me percebes...
    Beijinho

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  3. Alguma vez pensaste em escrever contos?
    Com escrever um como "O pequeno Príncipe", havia suficiente!!

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  4. Muito obrigada pela sugestão Acho que mesmo se o livro foi escrito no anos '30 tem ainda um "esprit" dos tempos de hoje, com isso medo do estranheiro que mt hà na Italia agora.
    Vamos ver si consigo buscar o livro. Tou acabando Ruth Rendell, mas nesse periode estou leyendo devagar devagar... Bye&besos

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  5. obrigado pelo seu post que dah vontade de (re)ler o livro...
    mais informações sobre o Miguéis : o site http://www.migueis.net/ ou a pagina do facebook http://fr-fr.facebook.com/pages/Jos%C3%A9-Rodrigues-Migu%C3%A9is/134715426569207
    jorge

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  6. Obrigada, amigo Jorge. Vou ver porque gosto muito dele.
    Grande abraço
    o falcão

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